quarta-feira, 12 de junho de 2019

Um fim no espelho (Enquanto Acaba)


 Me diz você: acredita nisso das pessoas nascerem destinadas a se encontrar?Como se um aparente esbarrão na rua fosse fruto de algum algoritmo místico ou coisa que o valha? Ou você acha mais confortável a ideia de que tudo é uma grande coincidência? Como o dia em que nos conhecemos, em que a moça do café errou meu pedido, me fazendo atrasar, enquanto você voltava para procurar seu casaco que ficou exatamente na mesa ao lado da qual eu me sentei.


Bastaria uma dessas coisas não ter acontecido e, provavelmente, nós jamais teríamos nos encontrado. E episódios como nossas viagens pelo Nordeste, os shows que fomos juntos ou as aulas de ukulele jamais teriam existido. Então, coincidência ou predestinação? Me faço a mesma pergunta e sinceramente não sei responder. Só posso pensar que as duas únicas respostas possíveis são angustiantes para mim.

Por um lado, o tempo que passamos juntos estava escrito. E o que para alguns pode ser sinal de algum tipo de perfeição, me parece muito mais algum sinal de falta de autonomia que torna tudo menor.

Do outro lado da moeda, a opção de aceitar que nosso encontro foi resultado de uma grande combinação de eventos aleatórios, sem qualquer motivação em comum, me traz de volta para o momento atual e me desperta mais uma vez a dúvida: Se tudo é possível, ainda somos possíveis juntos?

Ou é melhor pensar que não há razão para nada, seria melhor forçar-me a parar de querer enxergar nosso encontro como o mais importante da minha vida, encarando-o apenas com algo que só teve forma quase que acidentalmente.

Há uma semana terminamos.

Foi de repente. Nenhum dos dois imaginava isso no início daquele dia. No entanto, quando começamos a falar do futuro, nós dois sabíamos que o momento era aquele. Foi uma escolha nossa, mas parecia que tudo havia sido preparado para acontecer naquele instante.

Nosso último beijo acabou nos levando a algo mais intenso e, ao fim do fim, algumas juras de gratidão, respeito e principalmente de que ficaríamos bem. Te acompanhei até o portão, onde estava sua bicicleta e você saiu sorrindo como quem voltaria logo.

Uma despedida bem diferente do que qualquer padrão que eu seria capaz de imaginar.Fiquei lá fora um pouco e comigo uma sensação que só posso comparar a uma maré baixa: tranquila, mas sem qualquer alegria. Lá dentro, a solidão me esperava.

Minha cabeça começa a doer logo que o sol invade  meu quarto pela janela, como quem me avisa que a realidade é inevitável, por mais que eu queira o contrário. 
Tento remontar a noite anterior. No primeiro momento me pergunto se não foi tudo um mal-entendido, que talvez agora seja hora de conversarmos novamente, mas é preciso aceitar. Você se foi.

Buscando algum tipo de distração peguei o celular e vi a linda postagem em que você me marcou. Eram cinco parágrafos de agradecimento pelo tempo que passamos juntos, em que você minimizava o fim e exaltava o nosso encontro, os momentos vividos e o quanto crescemos na companhia um do outro. Jurou que não mudaria nada em nossa história e que acreditava em um futuro feliz para os dois.

Respondi com outro post, com uma foto do início do nosso namoro. Foquei em te agradecer pela pessoa que você ajudou a me tornar, relembrei momentos como o da foto escolhida e falei ali, para toda internet ver, que torcia pelo seu sucesso independente do lugar que você escolheria ir.

Na mesma medida em que choviam likes e comentários bonitos, a angústia crescia em mim. Eu havia sido sincero? Certamente não. Mas foi uma atitude madura. Então será isso? Maturidade tem a ver com mentir para si mesmo em alguns casos, para que os outros julguem seus atos como uma boa postura? Apesar de esse ser o caminho que eu estava pegando, ele não fazia nenhum sentido lógico para mim.

Durante os dias seguintes também precisei ser falso comigo mesmo, forçar-me a sair de casa e continuar a viver, afinal havíamos prometido permanecer bem. Passei a ir de bicicleta para o trabalho, com a desculpa de enfim me exercitar, mas por vezes me vi diminuindo a velocidade e aumentando a atenção quando passava pelas ciclofaixas que eu sabia que você pegava.

Mas só tivemos contato novamente pelas redes sociais. Eu me sentia bem cada vez que você respondia com atenção os comentários que eu fazia em suas publicações, também passei a postar mais coisas, para te ver interagindo comigo. Sempre que eu tinha essa “sorte” você me parecia estar bem. E, mesmo sem te ver, eu imaginava cada postura sua com aquele brilho no olhar, que é habitual seu.

E, quando essa tentativa de interação não era correspondida, eu encontrava sempre tua presença em cada um dos vários objetos seus esquecidos pelo apartamento. Um fone de ouvido na mesa de centro; um isqueiro em formato de violão ao lado do meu violão; um piercing novo, que você comprou e ainda não tinha colocado; além de algumas peças de roupas, cada uma em um canto diferente.  Por mais que houvesse ali um pouco de dor, prevalecia a esperança que, em alguma hora, você usasse a chave que deixei contigo, mesmo que fosse somente para vir buscá-las.

Isso aconteceu justamente hoje, enquanto eu lia, novamente, mais uma parte das mensagens que trocamos durante os 5 anos, 3 meses e 11 dias em que estivemos lado a lado. Você não usou suas chaves, é claro. Chegou como uma visita normal, tocou a campainha, pediu desculpas por não avisar, explicou que saiu de casa sem ter certeza que viria e perguntou apenas se poderia pegar as coisas.

Se havia brilho em seu olhar eu não pude perceber, afinal, pela primeira vez, você evitou um contato visual. Passou por mim de cabeça baixa e recolheu os objetos que preenchiam a bagunça, de forma tão rápida que revelava o quão bem você conhecia aquele espaço.

Jogou tudo na mochila, deixou a chave em cima da mesa, saiu e só disse tchau quando já começou a pedalar, dessa vez sem olhar para trás. Dessa vez você não voltaria. Por fim...o fim.

No fim não há posts, juras ou bons momentos. No máximo, as lembranças que deixamos ou as coisas que esquecemos. Você esqueceu seu isqueiro. E por mais que isso prorrogue minha dor, escolhi olhar para ele todo dia, como quem faz da tristeza um chiclete, que fica na boca até perder completamente o gosto. Resolvi deixá-lo onde estava, até que eu esqueça dele também, enquanto lembro que nada acaba bem nesse mundo.





Um espelho trás apenas uma imagem refletida. Quer conhecer o outro lado dessa imagem? clica aqui.



quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

O mundo de cabeça pra baixo.






BR, fim de tarde, som alto, 100 km por hora, tudo certo... não vai dar tempo,
caminhão...



Assim como Platão, eu penso que estamos sempre querendo aquilo que não temos. 
E quando somos crianças isso se potencializa, porque acreditamos que os adultos podem mais. Quando você é uma criança pobre, sem muitos amigos e com uma mãe
superprotetora, então, não há outro caminho, a não ser, querer crescer.

Fui uma criança que passou muito tempo preso dentro de casa. Brincar na rua não era uma opção, por conta do perigo, dos carros e más influências.
 E, talvez por isso, eu tenha crescido alucinado por carros e por más influências.

Esperei a maioridade com tanto desejo que minha mente já sabia exatamente o cara que eu queria ser: esperto, aventureiro, corajoso e vários outros adjetivos que somente a imaturidade pode desejá-los em conjunto.

Lembro-me que, a cada aniversário, eu comemorava não o fato de ter um ano a mais, mas de faltar um ano a menos para os 18 anos.
Minha vida era uma eterna espera dos “dias melhores que estavam por vir”.
E, se há algo de resiliente em mim, devo, talvez, a essa época, em que colocava para o futuro toda responsabilidade de ser feliz.

Quando a maioridade finalmente chegou me soou como um tiro de largada.
Eis que era a hora tão sonhada.
Consegui minha permissão para dirigir, herdei o Escort Hobby do meu pai, entrei no primeiro trampo que me ofereceram e me convenci de que a vida havia mudado.

E, revestido de super-herói, fui viajar com alguns amigos...



... BR, fim de tarde, som alto, 100 km por hora, tudo certo... não vai dar tempo,
caminhão…



Uma ultrapassagem malsucedida me colocou em uma das situações mais complicadas da minha vida. Bati no carro em que eu tentava ultrapassar, o impacto me fez perder o controle e vinha um caminhão no outro sentido. A única opção possível foi puxar o carro para o acostamento, foi aí que o carro capotou.

Sempre que conto essa história é normal que me perguntem se tive medo de morrer. A resposta sempre foi dada com tranquilidade: – Não.
 O medo veio depois que o carro parou.
Como adiantei, não viajava sozinho, então, os milésimos de segundo que antecederam a confirmação de que os demais estavam bem foi o que realmente me abalou.

Passamos muito tempo projetando imagens de nós mesmos para nós mesmos e, por
vezes, nos esquecemos de que quando tomamos direções, quase sempre, tem alguém tomando carona.

Ver o mundo de cabeça pra baixo, enquanto o carro virava, não me assustou, mas pensar em quantos esperavam que eu voltasse em segurança daquela viagem me fez querer repensar o controle da minha vida, os planos que tinha pra mim e principalmente os planos que queria ter em conjunto com os que amo.

Quando o carro parou, pude ver que todos estavam bem. Hoje faz 10 anos daquele dia, mas ainda me alivia saber que estão bem. Quero estar bem também, por todos que, de alguma forma, se importam e, assim, poder seguir, enquanto a viagem continuar.



Dedicado a : Rony Sales, Houston Herculano e Felipe Guilherme.

revisão textual: Jéssica Maria.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O dia mais chato da minha vida


 Quando criança, adorava as viagens que fazíamos em família. A mais rotineira era para o sítio do meu avô. Adorava ver a variedade de bichos, árvores e frutos. Poder brincar em toda parte sem qualquer tipo de preocupação ou cuidado dos meus pais.

Por esse motivo, fiquei enormemente feliz quando minha mãe avisou que viajaríamos todos naquele final de semana. Não havíamos planejado, mas a pedido do meu avô tivemos que fazer as malas às pressas.

Meu avô estaria chegando de algum lugar, e meu pai precisaria buscá-lo na parte urbana da cidade.
Como sempre, eu queria levar vários brinquedos, mas minha mãe falou que eu levasse somente um, afinal a viagem seria curta. Já voltaríamos na manhã seguinte.

Sempre que viajávamos, a diversão já começava no carro.
Viajamos bem cedo.
Meu pai possuía um Escort grafite, e nele tinha um toca-fitas. A cada viagem, meu pai comprava uma fita nova e dessa vez ele me deixou escolher.
Escolhi o acústico da Legião Urbana, afinal já me sentia quase adolescente.

Chegando no sítio, fomos recebidos por minha avó, que foi logo informando que havia bezerros novos, e quando me animei pra vê-los, meu pai me chamou pra irmos encontrar meu avô, afinal ele já  devia estar chegando e ele não queria deixar o pai esperando.

O local marcado era o posto de gasolina. Ficamos dentro do carro esperando. No rádio tocava a última faixa da fita que havíamos comprado. Ao final, troquei o lado da fita e escutamos novamente.
Quando percebi, meu pai estava dormindo, vi que ele tinha o aspecto cansado. Tinha trabalhado a semana toda e o seu dia de folga tinha se transformado em uma viagem repentina.
Quando dei por mim, já estava na última música daquela lado da fita. Acordei meu pai e disse que estava com fome, mas na verdade era só tédio.

Ele sorriu, olhou pro relógio e me disse "teu avô tá demorando" e me levou pra lanchar.
No posto não havia loja de conveniência; em seu lugar tinha um bar. Há poucas opções de lanche, meu pai tentou me convencer a comer panelada, comida típica de interior, mas optei por um recheado de chocolate com Coca-cola. Mesmo ele concordando com minha "refeição", fui obrigado a escutar um mini-sermão sobre Coca-cola e seus malefícios.

Alguns rapazes jogavam sinuca, e fiquei observando. Na verdade eu estava atrapalhando a disputa, e meu pai precisou me retirar várias vezes.

Ao fim da disputa, meu pai se viu obrigado a jogar comigo. Me ensinou as regras e depois fez de conta que elas não existiam para que pudesse me deixar ganhar. Gastamos uma dez fichas até que fui obrigado a ceder a mesa para outras pessoas que também queriam jogar. Fui para o carro chorando. Sentia que meu pai estava sempre a me privar de diversão.

Sentei no banco da frente, lugar sempre ocupado por meu pai, apoiando os braços no volante e esperando em vão alguma forma de consolo. Entre lágrimas e palavrões falados bem baixo, dei um ponta pé e tive a descoberta do dia. Ao mesmo tempo não contive o entusiasmo e gritei: PAPAI JÁ ALCANÇO OS PEDAIS DO CARRO!!!

Ele foi até o Escorte rindo. Sabia o que aquilo significava. É que desde de sempre eu o questionava sobre quando ele me ensinaria a dirigir e a resposta era sempre a mesma:
- No dia em que você alcançar os pedais.
Comecei a pedir aquilo tão cedo que antes a resposta colocava esse dia em um futuro bem distante, mas agora havia chegado, e meu pai não tinha escapatória.

Ele entrou no carro, sentou-se no banco ao meu lado e deu as instruções.
Me deu ordem para que virasse a chave. Meu coração acelerou e o ritmo aumentava cada vez mais enquanto meu pequeno pé soltava pouco a pouco embreagem e o outro ia ao encontro ao acelerador.
Dei uma volta ao redor do posto sem estancar nenhuma vez sequer. Ele me mandou parar e disse que eu era um ótimo motorista. Estava transbordando de tanta alegria.
Quando pensei que recomeçaríamos ele tirou a chave e pôs no bolso. Voltei a chorar imediatamente. Se eu tava tão bem, por que não podíamos continuar? Tinha certeza que poderia ir até a BR.
Meu pai riu e disse que teríamos tempo para aquilo. Ele saiu do carro para não dar ibope ao meu choro.

Ao perceber que chorava em vão, comecei a brincar com o carro de meu pai.
Fui exercitando o movimento de marchas. Não importava se o carro estava parado, na minha mente ele ganhava movimento. Liguei o rádio no volume máximo e agora eu estava a 100 por hora em uma BR bem longe. Lá fora o Sol já estava se ponto e eu me sentia bem.

Meu pai voltou pro carro, pela primeira vez no dia, com o aspecto de quem já não tinha mais paciência.
Desligou o rádio, falou que eu me comportava como uma criança de idade menor que a que eu tinha e que ainda ia acabar quebrando a caixa de marcha do carro e teríamos que ficar ali o final de semana inteiro.

Pensei:
- Não falta muito. Estamos aqui desde cedo.
Nesse momento odiei aquela viagem. Meus irmãos estavam no sítio e eu estava lá. Tendo um dia de tédio.
Resolvi permanecer calado como forma de protesto. E nem percebi quando comecei a dormir.

Quando dei por mim, o carro já estava em movimento; ao lado do meu pai estava meu avô.
Lá fora já era noite. Não me mexi e deixei que eles continuassem pensando que eu ainda dormia.

Meu pai ria e contava pro meu avô sobre minha aventura no volante. Meu avô o repreendeu mas o fez sorrindo.

Meu pai limitou-se a dizer: "Ele vai ser um menino legal".

Dormi outra vez e quando acordei meu pai me levava nos braços para a cama.
Lembro te ter sonhado com carro, com meu pai segurando o volante junto comigo, com rádio tocador de fita, sinuca e posto de gasolina.

Na manhã seguinte já acordei na hora de voltar pra casa.
Implorei para que minha mãe me deixasse com meus avôs, mas foi em vão. Vi os filhotes apenas por um instante e entrei no carro emburrado. Outra vez a trilha sonora foi Legião Urbana, mas não tinha a mesma graça. Pra mim, aquele havia sido o pior final de semana da minha vida.

Hoje eu não sei ao certo quanto tempo se passou, nem quantos anos exatamente eu tinha, nem que mês do ano.
Também não consigo lembrar por qual motivo meu avô não podia simplesmente pagar alguém para deixá-lo em casa.
Certa vez até perguntei a ele se lembrava daquele dia, mas ele não lembra.

O certo é que eu lembro bem e que, caso tivesse a sorte de poder voltar no tempo, eu com certeza escolheria aquela tarde.

Passei vários dias na companhia do meu pai, mas aquele foi um dia todo só nosso. Onde ficaram muito claro nossas semelhanças e o quanto ele se sentia orgulhoso em cada imitação que eu fazia dele.
Quando fecho os olhos, ainda posso enxergá-lo segurando o volante para me mostrar que está tudo bem e que posso continuar em frente.
E assim eu sei que posso seguir....


















revisão textual: Hélio Leonam.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Ainda existirão dúvidas após o fim?

       






     













          Perdi uma ótima oportunidade semana passada. Atendi o telefone e ouvi uma moça simpática dizer que o Bispo me convidara para ministrar um curso de curto período sobre Antropologia Teológica para uma turma de seminaristas. Pagariam bem, providenciariam o transporte e além de tudo poderia ser que o contato com Sua Reverendíssima me trouxesse a possibilidade de uma promoção no Clero. Claro, se eu ainda fizesse parte do Clero.

         Acredito que a moça que ligou realmente falava em nome do Bispo, mas é provável que a lista de possíveis facilitadores para o tal curso não tenha passado pelo crivo do olhar cuidadoso de Dom Alberto. 

       Exerci durante vinte três anos a função social de padre. Trabalhava em uma pequena Paróquia próximo à praia, pouco movimentada, o que me garantia o tempo necessário para lecionar em três universidades, essa atividade, aliás, sempre foi minha paixão.

        Pouco a pouco fui perdendo o entusiasmo pelo serviço do altar. A maioria dos fieis está na igreja por simples convenção social, quase sem qualquer tipo de reflexão ou busca verdadeira. Junte-se isso aos problemas administrativos e frequentes escândalos, terá, pois, um ambiente de trabalho totalmente desestimulante. E preciso confessar que já desde o seminário me percebia um homem com mais dúvidas que credos firmes. Reprimi essas dúvidas durante muito tempo, mas depois de um pouco mais velho percebi que bastava apenas não partilhá-las com ninguém e estava tudo certo. Ninguém me julgaria e culpa nunca foi algo muito presente em mim.  

        Tornei-me um padre ateu e vivi nesse anonimato por muito tempo. Adotei uma postura que deixava os assuntos litúrgicos de lado e tratava bem mais de assuntos políticos e realidades sociais. Vi que a comunidade gostava disso e me senti confortável, além do mais eu sempre fui mais reconhecido pelo trabalho de professor do que pela batina.

       A maioria das pessoas pensam que a maior dificuldade de um padre se dá no lado sexual, e talvez seja assim para muitos, mas não para mim. Sempre estive tão obcecado pela leitura e conhecimento que atração carnal sempre foi algo quase irrelevante, eu não conseguiria administrar nenhum tipo de relação a dois. Meu problema maior era subir ao altar. Todas as vezes que estava lá em cima me sentia um ator infeliz, tinha a obrigação de proclamar algo que para mim não fazia sentido algum, porém jamais fui questionado.  

      No entanto quando a idade vai chegando, nos damos conta que o bem-estar necessita de uma dose bem servida de egoísmo.  O peso da batina aumentou consideravelmente e já não suportava mais me censurar durante as aulas. Parte de mim acreditava que era meu papel preservar nos alunos uma visão crente embora meu desejo verdadeiro fosse de confrontar a todos com as mais pesadas reflexões sobre a existência do homem e falsa ideia de um Deus. 

     Emiti a carta pedindo suspensão de minhas atividades na Paróquia dois meses antes do diagnóstico do câncer. 

     Embora desde muito cedo tenha me dedicado a refletir a existência humana, somente quando percebi que o fim se aproximava realmente entendi o significado de estar vivo. Dar-me conta de que tudo é passageiro e que em breve minha existência também passaria me fez perceber o quanto gostava de tudo ao meu redor: as pessoas que conhecia, os lugares que frequentava, e sobretudo, o quanto gostava de mim mesmo.

      Embora meu quadro já fosse irreversível, o médico não abriu mão do tratamento de quimioterapia e, portanto, tive de comunicar meu afastamento às faculdades em que lecionava, e isso fez com que a notícia se espalhasse rapidamente, chegando inclusive a minha ex-paróquia.

     Mas isso eu já esperava. O que eu não contava era com as várias manifestações ofensivas nas redes sociais, nas ruas e até por cartas que chegavam pelo Correios ou eram deixadas pessoalmente em minha casa. O que mais escutava era que estava sendo castigado. Que eu abandonei Deus e por isso ele também agora havia me abandonado. 

      Em outros tempos eu teria reagido melhor a essas manifestações, mas, talvez por meu quadro já debilitado, cada palavra me atingia em cheio, me afogando cada vez mais em um mar de melancolia e solidão.  

       Acabei por me isolar, passo os dias agora escrevendo ou lendo alguma coisa que me distraia.  Mas o que mais tem tirado meu sono é a imagem que essas pessoas têm de Deus.

     Como acreditar que um deus de amor e misericórdia poderia castigar?

     Por que então não teria me castigado antes, enquanto eu exercia a função de Sacerdote acreditando ser tudo uma mentira?

      E por qual motivo eu, um ateu, estava me importando com a imagem que as pessoas tinham de Deus?

      Lembro bem dos primeiros dias depois de deixar as funções sacerdotais, do quanto me sentia bem e livre. Não precisava fingir nada e isso me fazia estar bem comigo mesmo, mas agora me questiono se eu não havia simplesmente lançado para longe as dúvidas que sempre estiveram presentes em minha mente.

       A maioria dos ateus precisou passar pelo processo da afirmação de ateísmo, que é quando você de fato assume sua posição. Mas podemos refletir que se se chegou a essa conclusão é porque a dúvida era relevante. Em outras palavras, se Deus não existe e eu tenho essa certeza, toda e qualquer fala dita sobre isso não deveria me atingir. Mas o que acontece é exatamente o contrário. Quanto mais penso, mais me sinto preso a esse nó.

     A única conclusão que consigo ter é de que permanecerei com essa dúvida enquanto existir. Não posso me definir como totalmente crente ou descrente.

     Assim como o câncer que habita em mim, essa dúvida não é apenas uma doença. É uma simples célula ou uma ideia que em algum momento cresceu diferente das outras e tornou-se o que é. Faz parte de mim e, portanto, sou eu mesmo.

     Mais um dia vai chegando ao fim. Não sei quantos dias ainda terei, mas quando olho em volta percebo que estou como sempre estive: sozinho com uma mente borbulhando de dúvidas que fazem de mim quem sou.   

     Vou deixando o sono vencer à mesma medida que me conforto com a ideia de que é  muita pretensão querer saber todas as coisas. Mas tudo passa e quem sabe depois disso eu saiba um pouco mais.  


    Ainda restará algo de mim depois que tudo passar? 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A tal da Dona Felicidade, Seu Inverso e o Shopping Metrô Itaquera.















      Apesar de Corinthiano roxo, só estive na cidade de São Paulo duas vezes. Fiquei pouco, dois dias na primeira visita e quatro na seguinte. Em ambas conheci o máximo que pude, mas obvio que não a cidade toda. O único lugar que visitei por duas vezes foi o Shopping Metrô Itaquera, que leva o nome da estação que passa ao lado, mas não pense você que eu sou fã de Shoppings, acontece que em minha primeira visita meu tio precisou ir ao caixa eletrônico e usou o desse shopping. Como a fila estava grande eu aproveitei para dar um “rolezinho” pelos corredores e acabei indo até o metrô, de onde se podia ver ao longe o estádio do Corinthians ser construído. Como estava chovendo forte, isso foi o mais perto que pude chegar do templo alvinegro. Apesar de não satisfeito, estava feliz.

     Após dois anos e lá estava eu novamente em Sampa, se da primeira vez foi por motivo de férias, agora eu era candidato a um cargo público e aproveitei para chegar alguns dias antes da prova e finalmente assistir um jogo do Timão em sua casa.

    Meu tio, o mesmo, me deixou em frente ao Shopping, também o mesmo, mais ou menos com três horas de antecedência ao começo da partida, visto que nem ingresso para o jogo eu havia comprado. Vou confessar uma coisa: apesar de adorar viajar eu não gosto de me sentir hóspede, é que um hóspede sempre precisa de um anfitrião e talvez minha alta estima não esteja preparada para tal. Meu tio sempre me tratou muitíssimo bem, mas na hora em que ele falou que me encontraria uma hora após o término do jogo e deu partida no carro eu percebi que acabara de ter a melhor sensação do meu dia, e que já há algum tempo, aproximadamente dois anos, eu não me sentia tão à vontade quanto naquele momento.

     Caminhei até o estádio, fotografei bastante durante a caminhada, tomei uma cerveja, comprei o ingresso, tomei uma segunda e uma terceira cerveja, voltei ao Shopping para almoçar, tomei uma quarta cerveja ao invés da sobremesa e percebi que não parava de sorrir por um só segundo; Só não estou certo de que sorria pelo ingresso comprado, pelas cervejas ou por alguma relação espiritual com aquele shopping. Eu estava certo somente de que não queria que aquele momento acabasse.

     Faltando 40 minutos para o início da partida pus-me a caminhar em direção ao estádio, acompanhado de mim somente uma quinta cerveja, que prometi a mim mesmo ser  a última do dia. Fiquei deslumbrado ao entrar no Itaquerão, estádio lindo, torcida vibrante, clima agradável e eu super empolgado pensei: - O Corinthians pode até perder que mesmo assim vou continuar feliz. 

    A todos os “antis”, quero dizer que o Corinthians venceu aquele jogo, mas enquanto me despedia do estádio me questionei: Aonde mora a tal da Dona Felicidade? Será em Itaquera e por isso eu me sentia tão bem a cada visita? Acho que afirmei que sim.

   Fotografei mais um pouco o estádio pelo lado de fora,  quebrei a promessa e bebi a sexta cerveja até que por fim comecei a caminhar em direção ao Shopping, já era quase hora de encontrar meu tio.

   Cheguei ao ponto de encontro com 10 minutos de antecedência e para me distrair fiquei visualizando as fotos que tinha feito naquela tarde, mas não demorou muito até ficar sem bateria, não era pra menos já que a última carga havia sido dada no dia anterior e passei as últimas horas usando o aparelho a todo o momento, tudo bem, meu tio não iria demorar.

    Já estava ali há duas horas e nada do meu tio, duas horas sem celular; tempo suficiente para pensar que duas horas não é muito tempo levando em conta o trânsito de São Paulo; Tempo para achar que meu tio tinha me esquecido; tempo suficiente para pensar em mil formas de conseguir chegar na casa dele, que eu nem sabia o endereço; tempo suficiente para me achar imbecil por não saber o endereço; tempo bastante para pensar em ligar de um telefone público para casa e conseguir o endereço com minha avo; tempo para pensar que  um táxi não devia ser assim tão caro; tempo suficiente para esquecer da empolgação do jogo, tempo suficiente para perceber que não havia nada de mágico em Itaquera... tempo suficiente para mais uma vez pensar que era o trânsito...

   Mas afinal, onde estava aquela felicidade que nem a derrota do time do coração era capaz de abalar?  Por que será que no começo daquela tarde eu havia me sentido tão bem e agora a única coisa que me restava era me perguntar pelo meu tio?

    Quem somos? De onde viemos? O que é o universo? Onde está meu tio?

   Posso acreditar que apesar das opções que tinha, como tentar conseguir o endereço com minha avó, só o que me sobrava era ficar triste, porque na verdade pra mim, tristeza é somente ausência.  De verdades, de certezas, de atenções, de posses, de condições e outras drogas mais. E o mais legal do enredo é que isso tem relação direta com tempo e espaço, ou seja: O que te torna infeliz no começo de uma tarde pode no mesmo dia ser algo irrelevante pra você, tudo depende das suas opções no momento.

   A Alegria por sua vez, é um tiro certeiro. É estar sozinho, na maior cidade do seu país, você só é familiarizado com único lugar e esse lugar é justamente onde você gostaria de estar naquele momento.

   Se o jogo do Corinthians fosse na minha cidade, ou mesmo se eu morasse em São Paulo, eu poderia até ir ao jogo com muita felicidade, mas certamente eu teria muitas outras opções e essa pressão por escolhas minimizaria minha felicidade, já que a alegria é apenas uma satisfação de realidade, um simples contentamento.

   Temos tantas opções à nossa volta, boas ou ruins, que acabo por pensar que à felicidade é nômade, encontra-lá é mesmo questão de sorte, a tristeza não, essa faz questão de tentar te seguir. 

    Meu tio chegou ao local marcado três horas depois de mim, com um sorriso maroto. Pra minha sorte ele foi sincero e falou que havia esquecido de mim e queria minhas desculpas, pra sorte dele eu não tinha muitas opções.

sábado, 31 de dezembro de 2016

A namorada nova do Juninho

 



Terra, ano 2354.

-Senta aqui precisamos conversar. Fala ele à esposa, enquanto prepara um baseado para os dois. Prende, põe na cigarreira elétrica, traga, curte a brisa e passa para ela dizendo:

- Você tem que ser menos rígida com ele,  o quer por perto mas vai acabar fazendo com que ele se sinta castrado e não vai demorar nada até que se aliste em uma missão de exploração a buracos negros.

Ela responde após dois tragos e nenhuma devolução do cigarro: - Nossa como você é dramático, depois eu que preciso ser menos pessimista.

- Querida, são só quatro meses de férias, ele pode ir com a nossa nave, ela não é nova mas aguenta a viagem. Desde o fim da Guerra não houveram mais acidentes, não vai acontecer nada demais.

- Não me preocupo com acidentes, você sabe (fala ela finalmente dividindo a erva com o esposo), eu é que não vou com a cara daquela menina verde.

- Amor, não fale assim, se já existisse um tribunal interplanetário você com certeza seria processada.

Ela levanta vai até a janela e começa a chorar.

– Eu sei que é bobagem minha, mas não consigo me acostumar com a ideia do meu filho copulando com uma marciana, ainda mais bem longe da nossa casa. É provável que esses seres do espaço nem tenham barreiras contraceptivas instaladas via Wifi... Aiiii, eu não quero uma “coisinha de Marte” me chamando de vovó. Por que ele não pode ser como a irmã, que namora alguém da Terra?  Ela e a Júlia fazem um casal tão lindo.

-Querida, o Júnior sempre gostou mais de sair do lugar comum, lembra quando ele era criança e foi pego contrabandeando queijo? (Risos).  Passa o baseado.

- E você ainda rir! O filho da vizinha começou com queijo e depois acabou expulso do Continente por tráfico de carne vermelha, sem falar na quantidade de artérias entupidas. Pegue, mas deixe o último trago pra mim.

-Você não vai poder agir assim pra sempre, Meu bem, já tivemos a idade dele, deixe o garoto viver... Ele faz bem de querer sair daqui afinal, desde que um dos sóis artificiais parou de funcionar, a crise só piora. Tome esse cigarro, eu  não quero mais fumar, preciso de algo mais forte. Sobraram cogumelos?

-Estão na gaveta.  Tudo bem ele pode ir, mas teremos que realizar vasectomia, não quero correr riscos.

Nessa hora Juninho entra em casa, com um cachimbo na boca. Fala o pai:

- Garotão, eu e sua mãe conversamos e amanhã irei levar a nave pra fazer uns reparos, assim você poderá viajar logo no seu primeiro dia de férias.

-Não vai ser preciso pai. Eu terminei o namoro com a Kiki. Vou entrar para uma religião, que um amigo da escola está fundando.



- Ah, tudo bem... Como assim religião???