quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O dia mais chato da minha vida


 Quando criança, adorava as viagens que fazíamos em família. A mais rotineira era para o sítio do meu avô. Adorava ver a variedade de bichos, árvores e frutos. Poder brincar em toda parte sem qualquer tipo de preocupação ou cuidado dos meus pais.

Por esse motivo, fiquei enormemente feliz quando minha mãe avisou que viajaríamos todos naquele final de semana. Não havíamos planejado, mas a pedido do meu avô tivemos que fazer as malas às pressas.

Meu avô estaria chegando de algum lugar, e meu pai precisaria buscá-lo na parte urbana da cidade.
Como sempre, eu queria levar vários brinquedos, mas minha mãe falou que eu levasse somente um, afinal a viagem seria curta. Já voltaríamos na manhã seguinte.

Sempre que viajávamos, a diversão já começava no carro.
Viajamos bem cedo.
Meu pai possuía um Escort grafite, e nele tinha um toca-fitas. A cada viagem, meu pai comprava uma fita nova e dessa vez ele me deixou escolher.
Escolhi o acústico da Legião Urbana, afinal já me sentia quase adolescente.

Chegando no sítio, fomos recebidos por minha avó, que foi logo informando que havia bezerros novos, e quando me animei pra vê-los, meu pai me chamou pra irmos encontrar meu avô, afinal ele já  devia estar chegando e ele não queria deixar o pai esperando.

O local marcado era o posto de gasolina. Ficamos dentro do carro esperando. No rádio tocava a última faixa da fita que havíamos comprado. Ao final, troquei o lado da fita e escutamos novamente.
Quando percebi, meu pai estava dormindo, vi que ele tinha o aspecto cansado. Tinha trabalhado a semana toda e o seu dia de folga tinha se transformado em uma viagem repentina.
Quando dei por mim, já estava na última música daquela lado da fita. Acordei meu pai e disse que estava com fome, mas na verdade era só tédio.

Ele sorriu, olhou pro relógio e me disse "teu avô tá demorando" e me levou pra lanchar.
No posto não havia loja de conveniência; em seu lugar tinha um bar. Há poucas opções de lanche, meu pai tentou me convencer a comer panelada, comida típica de interior, mas optei por um recheado de chocolate com Coca-cola. Mesmo ele concordando com minha "refeição", fui obrigado a escutar um mini-sermão sobre Coca-cola e seus malefícios.

Alguns rapazes jogavam sinuca, e fiquei observando. Na verdade eu estava atrapalhando a disputa, e meu pai precisou me retirar várias vezes.

Ao fim da disputa, meu pai se viu obrigado a jogar comigo. Me ensinou as regras e depois fez de conta que elas não existiam para que pudesse me deixar ganhar. Gastamos uma dez fichas até que fui obrigado a ceder a mesa para outras pessoas que também queriam jogar. Fui para o carro chorando. Sentia que meu pai estava sempre a me privar de diversão.

Sentei no banco da frente, lugar sempre ocupado por meu pai, apoiando os braços no volante e esperando em vão alguma forma de consolo. Entre lágrimas e palavrões falados bem baixo, dei um ponta pé e tive a descoberta do dia. Ao mesmo tempo não contive o entusiasmo e gritei: PAPAI JÁ ALCANÇO OS PEDAIS DO CARRO!!!

Ele foi até o Escorte rindo. Sabia o que aquilo significava. É que desde de sempre eu o questionava sobre quando ele me ensinaria a dirigir e a resposta era sempre a mesma:
- No dia em que você alcançar os pedais.
Comecei a pedir aquilo tão cedo que antes a resposta colocava esse dia em um futuro bem distante, mas agora havia chegado, e meu pai não tinha escapatória.

Ele entrou no carro, sentou-se no banco ao meu lado e deu as instruções.
Me deu ordem para que virasse a chave. Meu coração acelerou e o ritmo aumentava cada vez mais enquanto meu pequeno pé soltava pouco a pouco embreagem e o outro ia ao encontro ao acelerador.
Dei uma volta ao redor do posto sem estancar nenhuma vez sequer. Ele me mandou parar e disse que eu era um ótimo motorista. Estava transbordando de tanta alegria.
Quando pensei que recomeçaríamos ele tirou a chave e pôs no bolso. Voltei a chorar imediatamente. Se eu tava tão bem, por que não podíamos continuar? Tinha certeza que poderia ir até a BR.
Meu pai riu e disse que teríamos tempo para aquilo. Ele saiu do carro para não dar ibope ao meu choro.

Ao perceber que chorava em vão, comecei a brincar com o carro de meu pai.
Fui exercitando o movimento de marchas. Não importava se o carro estava parado, na minha mente ele ganhava movimento. Liguei o rádio no volume máximo e agora eu estava a 100 por hora em uma BR bem longe. Lá fora o Sol já estava se ponto e eu me sentia bem.

Meu pai voltou pro carro, pela primeira vez no dia, com o aspecto de quem já não tinha mais paciência.
Desligou o rádio, falou que eu me comportava como uma criança de idade menor que a que eu tinha e que ainda ia acabar quebrando a caixa de marcha do carro e teríamos que ficar ali o final de semana inteiro.

Pensei:
- Não falta muito. Estamos aqui desde cedo.
Nesse momento odiei aquela viagem. Meus irmãos estavam no sítio e eu estava lá. Tendo um dia de tédio.
Resolvi permanecer calado como forma de protesto. E nem percebi quando comecei a dormir.

Quando dei por mim, o carro já estava em movimento; ao lado do meu pai estava meu avô.
Lá fora já era noite. Não me mexi e deixei que eles continuassem pensando que eu ainda dormia.

Meu pai ria e contava pro meu avô sobre minha aventura no volante. Meu avô o repreendeu mas o fez sorrindo.

Meu pai limitou-se a dizer: "Ele vai ser um menino legal".

Dormi outra vez e quando acordei meu pai me levava nos braços para a cama.
Lembro te ter sonhado com carro, com meu pai segurando o volante junto comigo, com rádio tocador de fita, sinuca e posto de gasolina.

Na manhã seguinte já acordei na hora de voltar pra casa.
Implorei para que minha mãe me deixasse com meus avôs, mas foi em vão. Vi os filhotes apenas por um instante e entrei no carro emburrado. Outra vez a trilha sonora foi Legião Urbana, mas não tinha a mesma graça. Pra mim, aquele havia sido o pior final de semana da minha vida.

Hoje eu não sei ao certo quanto tempo se passou, nem quantos anos exatamente eu tinha, nem que mês do ano.
Também não consigo lembrar por qual motivo meu avô não podia simplesmente pagar alguém para deixá-lo em casa.
Certa vez até perguntei a ele se lembrava daquele dia, mas ele não lembra.

O certo é que eu lembro bem e que, caso tivesse a sorte de poder voltar no tempo, eu com certeza escolheria aquela tarde.

Passei vários dias na companhia do meu pai, mas aquele foi um dia todo só nosso. Onde ficaram muito claro nossas semelhanças e o quanto ele se sentia orgulhoso em cada imitação que eu fazia dele.
Quando fecho os olhos, ainda posso enxergá-lo segurando o volante para me mostrar que está tudo bem e que posso continuar em frente.
E assim eu sei que posso seguir....


















revisão textual: Hélio Leonam.