segunda-feira, 6 de março de 2017

Ainda existirão dúvidas após o fim?

       






     













          Perdi uma ótima oportunidade semana passada. Atendi o telefone e ouvi uma moça simpática dizer que o Bispo me convidara para ministrar um curso de curto período sobre Antropologia Teológica para uma turma de seminaristas. Pagariam bem, providenciariam o transporte e além de tudo poderia ser que o contato com Sua Reverendíssima me trouxesse a possibilidade de uma promoção no Clero. Claro, se eu ainda fizesse parte do Clero.

         Acredito que a moça que ligou realmente falava em nome do Bispo, mas é provável que a lista de possíveis facilitadores para o tal curso não tenha passado pelo crivo do olhar cuidadoso de Dom Alberto. 

       Exerci durante vinte três anos a função social de padre. Trabalhava em uma pequena Paróquia próximo à praia, pouco movimentada, o que me garantia o tempo necessário para lecionar em três universidades, essa atividade, aliás, sempre foi minha paixão.

        Pouco a pouco fui perdendo o entusiasmo pelo serviço do altar. A maioria dos fieis está na igreja por simples convenção social, quase sem qualquer tipo de reflexão ou busca verdadeira. Junte-se isso aos problemas administrativos e frequentes escândalos, terá, pois, um ambiente de trabalho totalmente desestimulante. E preciso confessar que já desde o seminário me percebia um homem com mais dúvidas que credos firmes. Reprimi essas dúvidas durante muito tempo, mas depois de um pouco mais velho percebi que bastava apenas não partilhá-las com ninguém e estava tudo certo. Ninguém me julgaria e culpa nunca foi algo muito presente em mim.  

        Tornei-me um padre ateu e vivi nesse anonimato por muito tempo. Adotei uma postura que deixava os assuntos litúrgicos de lado e tratava bem mais de assuntos políticos e realidades sociais. Vi que a comunidade gostava disso e me senti confortável, além do mais eu sempre fui mais reconhecido pelo trabalho de professor do que pela batina.

       A maioria das pessoas pensam que a maior dificuldade de um padre se dá no lado sexual, e talvez seja assim para muitos, mas não para mim. Sempre estive tão obcecado pela leitura e conhecimento que atração carnal sempre foi algo quase irrelevante, eu não conseguiria administrar nenhum tipo de relação a dois. Meu problema maior era subir ao altar. Todas as vezes que estava lá em cima me sentia um ator infeliz, tinha a obrigação de proclamar algo que para mim não fazia sentido algum, porém jamais fui questionado.  

      No entanto quando a idade vai chegando, nos damos conta que o bem-estar necessita de uma dose bem servida de egoísmo.  O peso da batina aumentou consideravelmente e já não suportava mais me censurar durante as aulas. Parte de mim acreditava que era meu papel preservar nos alunos uma visão crente embora meu desejo verdadeiro fosse de confrontar a todos com as mais pesadas reflexões sobre a existência do homem e falsa ideia de um Deus. 

     Emiti a carta pedindo suspensão de minhas atividades na Paróquia dois meses antes do diagnóstico do câncer. 

     Embora desde muito cedo tenha me dedicado a refletir a existência humana, somente quando percebi que o fim se aproximava realmente entendi o significado de estar vivo. Dar-me conta de que tudo é passageiro e que em breve minha existência também passaria me fez perceber o quanto gostava de tudo ao meu redor: as pessoas que conhecia, os lugares que frequentava, e sobretudo, o quanto gostava de mim mesmo.

      Embora meu quadro já fosse irreversível, o médico não abriu mão do tratamento de quimioterapia e, portanto, tive de comunicar meu afastamento às faculdades em que lecionava, e isso fez com que a notícia se espalhasse rapidamente, chegando inclusive a minha ex-paróquia.

     Mas isso eu já esperava. O que eu não contava era com as várias manifestações ofensivas nas redes sociais, nas ruas e até por cartas que chegavam pelo Correios ou eram deixadas pessoalmente em minha casa. O que mais escutava era que estava sendo castigado. Que eu abandonei Deus e por isso ele também agora havia me abandonado. 

      Em outros tempos eu teria reagido melhor a essas manifestações, mas, talvez por meu quadro já debilitado, cada palavra me atingia em cheio, me afogando cada vez mais em um mar de melancolia e solidão.  

       Acabei por me isolar, passo os dias agora escrevendo ou lendo alguma coisa que me distraia.  Mas o que mais tem tirado meu sono é a imagem que essas pessoas têm de Deus.

     Como acreditar que um deus de amor e misericórdia poderia castigar?

     Por que então não teria me castigado antes, enquanto eu exercia a função de Sacerdote acreditando ser tudo uma mentira?

      E por qual motivo eu, um ateu, estava me importando com a imagem que as pessoas tinham de Deus?

      Lembro bem dos primeiros dias depois de deixar as funções sacerdotais, do quanto me sentia bem e livre. Não precisava fingir nada e isso me fazia estar bem comigo mesmo, mas agora me questiono se eu não havia simplesmente lançado para longe as dúvidas que sempre estiveram presentes em minha mente.

       A maioria dos ateus precisou passar pelo processo da afirmação de ateísmo, que é quando você de fato assume sua posição. Mas podemos refletir que se se chegou a essa conclusão é porque a dúvida era relevante. Em outras palavras, se Deus não existe e eu tenho essa certeza, toda e qualquer fala dita sobre isso não deveria me atingir. Mas o que acontece é exatamente o contrário. Quanto mais penso, mais me sinto preso a esse nó.

     A única conclusão que consigo ter é de que permanecerei com essa dúvida enquanto existir. Não posso me definir como totalmente crente ou descrente.

     Assim como o câncer que habita em mim, essa dúvida não é apenas uma doença. É uma simples célula ou uma ideia que em algum momento cresceu diferente das outras e tornou-se o que é. Faz parte de mim e, portanto, sou eu mesmo.

     Mais um dia vai chegando ao fim. Não sei quantos dias ainda terei, mas quando olho em volta percebo que estou como sempre estive: sozinho com uma mente borbulhando de dúvidas que fazem de mim quem sou.   

     Vou deixando o sono vencer à mesma medida que me conforto com a ideia de que é  muita pretensão querer saber todas as coisas. Mas tudo passa e quem sabe depois disso eu saiba um pouco mais.  


    Ainda restará algo de mim depois que tudo passar?