Perdi uma
ótima oportunidade semana passada. Atendi
o telefone e ouvi uma moça simpática dizer que o Bispo me convidara para
ministrar um curso de curto período sobre Antropologia Teológica para uma turma
de seminaristas. Pagariam bem, providenciariam
o transporte e além de tudo poderia ser que o contato com Sua Reverendíssima me trouxesse a
possibilidade de uma promoção no Clero. Claro, se eu ainda fizesse parte do Clero.
Acredito que a
moça que ligou realmente falava em nome do Bispo, mas é provável que a lista de
possíveis facilitadores para o tal curso não tenha passado pelo crivo do olhar
cuidadoso de Dom Alberto.
Exerci durante
vinte três anos a função social de padre. Trabalhava em uma pequena Paróquia
próximo à praia, pouco movimentada, o que me garantia o tempo necessário para
lecionar em três universidades, essa atividade, aliás, sempre foi minha paixão.
Pouco a pouco
fui perdendo o entusiasmo pelo serviço do altar. A maioria dos fieis está na
igreja por simples convenção social, quase sem qualquer tipo de reflexão ou
busca verdadeira. Junte-se isso aos problemas administrativos e frequentes
escândalos, terá, pois, um ambiente de trabalho totalmente desestimulante. E preciso confessar que já desde o seminário
me percebia um homem com mais dúvidas que credos firmes. Reprimi essas dúvidas durante muito tempo, mas
depois de um pouco mais velho percebi que bastava apenas não partilhá-las com
ninguém e estava tudo certo. Ninguém me julgaria e culpa nunca foi algo muito
presente em mim.
Tornei-me um
padre ateu e vivi nesse anonimato por muito tempo. Adotei uma postura que deixava
os assuntos litúrgicos de lado e tratava bem mais de assuntos políticos e
realidades sociais. Vi que a comunidade gostava disso e me senti confortável,
além do mais eu sempre fui mais reconhecido pelo trabalho de professor do que pela
batina.
A maioria das
pessoas pensam que a maior dificuldade de um padre se dá no lado sexual, e talvez
seja assim para muitos, mas não para mim. Sempre estive tão obcecado pela
leitura e conhecimento que atração carnal sempre foi algo quase irrelevante, eu
não conseguiria administrar nenhum tipo de relação a dois. Meu problema maior era subir ao altar. Todas
as vezes que estava lá em cima me sentia um ator infeliz, tinha a obrigação de
proclamar algo que para mim não fazia sentido algum, porém jamais fui
questionado.
No entanto
quando a idade vai chegando, nos damos conta que o bem-estar necessita de uma
dose bem servida de egoísmo. O peso da
batina aumentou consideravelmente e já não suportava mais me censurar durante
as aulas. Parte de mim acreditava que era meu papel preservar nos alunos uma visão crente
embora meu desejo verdadeiro fosse de confrontar a todos com as mais pesadas reflexões sobre a existência do homem e falsa ideia de um
Deus.
Emiti a carta
pedindo suspensão de minhas atividades na Paróquia dois meses antes do diagnóstico
do câncer.
Embora desde muito cedo tenha me dedicado a refletir
a existência humana, somente quando percebi que o fim se aproximava realmente
entendi o significado de estar vivo. Dar-me conta de que tudo é passageiro e
que em breve minha existência também passaria me fez perceber o quanto gostava
de tudo ao meu redor: as pessoas que conhecia, os lugares que frequentava, e
sobretudo, o quanto gostava de mim mesmo.
Embora meu
quadro já fosse irreversível, o médico não abriu mão do tratamento de
quimioterapia e, portanto, tive de comunicar meu afastamento às faculdades em
que lecionava, e isso fez com que a notícia se espalhasse rapidamente, chegando
inclusive a minha ex-paróquia.
Mas isso eu já
esperava. O que eu não contava era com as várias manifestações ofensivas nas
redes sociais, nas ruas e até por cartas que chegavam pelo Correios ou eram
deixadas pessoalmente em minha casa. O que mais escutava era que estava sendo
castigado. Que eu abandonei Deus e por isso ele também agora havia me
abandonado.
Em outros tempos
eu teria reagido melhor a essas manifestações, mas, talvez por meu quadro já
debilitado, cada palavra me atingia em cheio, me afogando cada vez mais em um
mar de melancolia e solidão.
Acabei por me
isolar, passo os dias agora escrevendo ou lendo alguma coisa que me distraia. Mas o que mais tem tirado meu sono é a imagem
que essas pessoas têm de Deus.
Como acreditar
que um deus de amor e misericórdia poderia castigar?
Por que então não
teria me castigado antes, enquanto eu exercia a função de Sacerdote acreditando
ser tudo uma mentira?
E por qual
motivo eu, um ateu, estava me importando com a imagem que as pessoas tinham de
Deus?
Lembro bem dos
primeiros dias depois de deixar as funções sacerdotais, do quanto me sentia bem
e livre. Não precisava fingir nada e isso me fazia estar bem comigo mesmo, mas
agora me questiono se eu não havia simplesmente lançado para longe as dúvidas
que sempre estiveram presentes em minha mente.
A maioria dos
ateus precisou passar pelo processo da afirmação de ateísmo, que é quando você
de fato assume sua posição. Mas podemos refletir que se se chegou a essa
conclusão é porque a dúvida era relevante. Em outras palavras, se Deus não
existe e eu tenho essa certeza, toda e qualquer fala dita sobre isso não
deveria me atingir. Mas o que acontece é exatamente o contrário. Quanto mais
penso, mais me sinto preso a esse nó.
A única conclusão
que consigo ter é de que permanecerei com essa dúvida enquanto existir. Não
posso me definir como totalmente crente ou descrente.
Assim como o
câncer que habita em mim, essa dúvida não é apenas uma doença. É uma simples
célula ou uma ideia que em algum momento cresceu diferente das outras e
tornou-se o que é. Faz parte de mim e, portanto, sou eu mesmo.
Mais um dia vai
chegando ao fim. Não sei quantos dias ainda terei, mas quando olho em volta
percebo que estou como sempre estive: sozinho com uma mente borbulhando de
dúvidas que fazem de mim quem sou.
Vou deixando o
sono vencer à mesma medida que me conforto com a ideia de que é muita pretensão querer saber todas as coisas.
Mas tudo passa e quem sabe depois disso eu saiba um pouco mais.
Ainda restará algo
de mim depois que tudo passar?